quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A Rede de arame farpado, de protecção à cidade de Luanda.

SENTINELA ALERTA…..ALERTA ESTÁ….Passa a palavra.


Dado a distância entre os postos de sentinela, era este o pregão obrigatório “gritar” quando ao cair da noite, diminuía o alcance da visão. Sentinela alerta…..ALERTA ESTÁ...Passa a palavra. E assim sucessivamente, ao longo de toda da rede.

Para si caro leitor, se é dos que desconhecia a existência e configuração dessa rede de arame farpado que circundava toda a cidade de Luanda, faço um apelo à sua imaginação.

Imagine que coloca uma folha de papel à sua frente e a meio faz um risco de cima abaixo com um lápis.
Agora, do lado esquerdo escreve Oceano Atlântico e no direito Angola.
A meio do risco faz uma bolinha que significa a cidade de Luanda. No topo do risco escreve um N do ponto cardeal Norte, no de baixo um S do Sul. Agora só falta a Rede.
Isso ainda é mais fácil. Imagine só que a partir da bolinha, traça no lado direito do risco um semicírculo com cerca de 15 Km de raio.
Pronto, podemos dizer agora que em teoria (ninguém entra e ninguém sai) de dentro dessa área, sem o conhecimento das Forças Armadas.
À excepção do Bairro do Cazenga e pouco mais (como já foi descrito neste blogue*) a Polícia Militar e a PSP garantiam no interior, a identificação e segurança das pessoas,

A rede de protecção no lado sul, começava perto da praia da Corimba, a partir do mar (entrando mesmo mar adentro) conforme se pode ver nas fotos abaixo.
Posto de sentinela nº1

Este posto nº1, era o único que tinha esta linda vista como se constata, que dava uns ciúmes danados por não podermos usufruir dela, quando estávamos de serviço e víamos a garotas giras do lado de lá, que sabendo disso, por vezes nos provocavam.

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No outro extremo “perto do Cacuáco” a rede lado Norte, que terminava no silêncio das dunas e murmúrio das ondas.

Exacto: Eu não sofria de doença contagiosa.
De calções; somente Eu, sem os meus botões...




As distâncias entre os postos, dependia da configuração da picada existente.
Nas rectas a distância era maior, nas curvas eram menores. Obrigatória era a certeza, de que o campo visual entre eles se sobreponha.

Esta rede era interrompida para “deixar passar” as estradas de entrada/saída da cidade,  tais como a de Catete/Nova Lisboa, e Cacuaco/Tentativa entre outras. Nestas competia à polícia militar o controlo de viaturas e não só.

Como já foi mencionado neste blogue, enquanto permanecemos no Grafanil, era uma das obrigações da Companhia de Caçadores 2504 "à semelhança de outras", a vigilância desta rede.
Composta por diversas fiadas de arame farpado, seria facilmente ultrapassada, se não existisse uma vigilância 24 sobre 24 horas dos nossos militares que no seu posto de observação se preocupavam em levar a cabo a missão que lhes fora confiada.

Na picada, eram poucas as aberturas existentes para as pessoas passarem. Existiam em pontos estratégicos, (não portas ou portões) mas obstáculos com o formato de xis, em arame farpado “semelhante aos vulgarmente vistos nas imagens da 2ª guerra mundial”, de forma triangular e que eram arrastados sempre que necessário, para deixar um espaço capaz de passar uma pessoa.
 

A grande maioria delas, quase a totalidade, eram mulheres que carregavam gigas à cabeça levando os filhos pela mão ou às costas.

Deslocavam-se para as suas lavras situadas no lado de fora, nos baixios onde existia água. Depois de verificarmos os documentos obrigatórios “Bilhete de Identidade e Cartão de Residência” registávamos em folhas próprias, a saída e mais tarde a entrada.

Vi por vezes algumas grávidas, a fazer algo inédito que desconhecia.
Presenciei algumas a mastigar “roer” bocados de tijolo. Anos mais tarde vi na televisão e descobri na Internet o seguinte: ...Esse estranho teste de sabor era parte de um curso de medicina darwiniana. Os alunos estavam estudando a evolução da geofagia – a prática de comer terra, principalmente solos semelhantes à argila, coisa que animais e pessoas praticam há milênios.

Carregadas de mandioca no regresso, sempre que lhes perguntava porque não traziam os maridos para ajudar, a resposta era quase sempre a mesma.
Meu furiel, ele não faz nada.
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Se a memória não me falha, nunca vi um branco pretendendo atravessar para lá ou para cá. O mesmo não digo, relativo aos pretos. Porque recordo, um único que depois de devidamente identificado, atravessou e não voltou.


Após render os militares nos postos de sentinela, os Furriéis “onde Eu me incluo” a espaços faziam a ronda usando para isso o conhecido Unimog. Mesmo fazendo tanto barulho, havia quem conseguisse dormir no posto "de trabalho" sem acordar.
Avisado pela sentinela anterior, que o camarada seguinte poderia estar morto, desmaiado ou a dormir, pois não respondia ALERTA ESTÁ ao grito de Sentinela Alerta, deslocava-me por vezes a pé, para chamar a atenção do prevaricador.


Como podes verificar nas imagens, os postos eram construídos “todos iguais” por Rés-do-chão com porta e 1º andar.
Nas noites de frio e vento, o R/C era uma tentação. Na solidão da noite, vencidos pelo sono e cansaço, mais que uma vez, verifiquei que um capacete oscilava ao vento, pousado no cano da G3 tentando enganar a ronda.

Ao contrário do que aconteceu a um Furriel** que conheci na ida a São Salvador do Congo, felizmente nunca existiu nada de grave durante os períodos de sentinela.
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Algures a meio do trajecto, onde existia uma das “portas” de entrada/saída  na rede, existia também o PC (posto de comando). Com um mínimo de conforto, era onde permaneciam os graduados que pertenciam ao grupo que estava de serviço, os condutores das viaturas do patrulhamento, o militar das transmissões, o enfermeiro etc.
Era daí, que partia a distribuição da comida e por isso  mesmo, era frequente a visita de estranhos ao serviço. Todos civis, quase sempre crianças dos musseques mais próximos, pediam comida para si e para os seus.

 
Na foto, da direita para a esquerda: Furriel Vítor, Furriel Costa, Furriel Pimenta, Condutor X, Condutor Aguiar e em primeiro plano, dois miúdos indígenas da periferia.

*- Se tens pressa e queres ler já, algumas histórias passadas no Bairro do Cazenga, carregar no link:
                                   http://ccac2504.blogspot.pt/2013/07/blog-post.html
     se não tens, então vai consultando o blogue, que elas a seu tempo vão aparecer.

**- Este Furriel segundo me contaram, tinha a mania de “brincar” fazendo a ronda do acampamento silenciosamente, para apanhar os soldados que dormiam. Já no final da comissão e numa zona infestada de turras, quis pelos vistos, uma vez mais repetir a gracinha numa altura que um soldado estava nervoso tendo visões e quando descobriu um vulto sorrateiro na calada da noite, falou
"quem vem lá, faça alto”.
O furriel pelos vistos, não parou nem se identificou. Aguardou um pouco e continuou a brincadeira, o que levou o soldado a desconfiar e mandar uma rajada na sua direcção.
Resultado!  Estava agora no Grafanil dentro de um caixão, acompanhado dos colegas, pronto para embarcar para a Metrópole