LUCUSSE, mês de Dezembro de 1970.
Uma vez mais, achei que fui “indevidamente” escalado.
Ainda por cima, estava dispensado pelo Comandante do
Batalhão de ir às operações para garantir a emissão da “Rádio POP”, (nessa
altura a Emissora recém formada por mim Pimenta, Giga e Vitor Santos, era ainda quase um embrião daquilo que se tornou) pois sabia que a falta do técnico da sonoplastia, tornava impossível a Emissão.
Era certo que
no mato, hoje não saberíamos pela rádio através de códigos "secretos" quem tinha a Correspondência.
Todo o pessoal escalado protestou, porque achavam que não era a nossa vez e porque era dia do tão ansiado correio. Também Eu pensava o mesmo.
Combinei com todos, que os carros iam partindo um a um o mais espaçados possível, para atrasar de propósito a saída.
Ia improvisando "Ei pessoal, alguém viu o meu Trótil? Sem os petardos não posso sair". Sabíamos que o avião
estava mesmo a chegar. Já se ouvia o barulho ao longe, faltavam pois poucos minutos.
Os camaradas que foram para a pista dar protecção
à sua chegada, estavam avisados e rapidamente trouxeram a correspondência. O nosso cabo escriturário "que era uma máquina" de imediato fez a triagem. Recebia nossa, e parti.
O objectivo principal desta operação era a procura de minas porque
na noite anterior soubemos ter havido o rebentamento de uma, do qual resultou
alguns feridos graves.
E assim com algum atraso, já na "posse" dos detonadores e petardos, e também da correspondência, o meu Unimogue conduzido pelo
Couto foi o último a sair.
Quando alcançar a coluna, “por ser o
Furriel das Minas e Armadilhas” passarei para a frente na minha posição habitual na berlliet,
que atapetada de sacos de areia para nos proteger dos estilhaços, era o nosso “Rebenta Minas”.
(Eu na posição de cajado-arma,... para demonstrar o que nunca se deve fazer)
( * ) Rebenta-Minas com uma segurança de fazer inveja aos americanos no Kosovo ou Afganistão
Alguns foram contemplados com um Aerograma ou Bate-Estradas,
inclusive Eu e o condutor. Como Eu, também Ele quis ler o seu.
Abriu-o, e quase
colado ao volante lá ia lendo e conduzindo ao mesmo tempo. (sei hoje que Ele
tem uma versão um pouco diferente desta). Eu ia sentado ao lado dele com a G3 fazendo de porta, com o
cano pousado no suporte do espelho retrovisor lateral e a coronha
metida no lado do banco.
Bem antes de nos embrenhar-mos no mato não muito longe do Quartel, mas ainda na picada com
mais de 400 Km que liga a cidade do Luso à Vila Gago Coutinho, percorríamos
pela berma, os poucos metros da única zona asfaltada para fugir dos buracos existentes.
A certa altura, o Couto ao olhar em frente quis
desviar-se de um obstáculo indo “calcar” uma mina (artesanal concerteza). De imediato se descontrolou
e o Unimog mergulhou barranco abaixo.
(Farta-mo-nos de percorrer esta "estrada" do Luso a Gago Coutinho e vice-versa, a escoltar o M.V.L.)
Todo o pessoal que ia sentado no banco atrás foi
catapultado, enquanto que Eu à frente, naqueles segundos de descida vertiginosa, agarrando a
arma ainda pensei, salto não salto, e acabei no chão caído de bruços, com os braços
esticados para a frente.
Depois só recordo o esforço tremendo que fiz, para me
safar do Unimog, que estava à minha frente com o pára-brisas em cima dos meus braços.
Oscilando tombado de lado, "numa posição
instável a 90º" ameaçava cair-me totalmente em cima.
Porque estava preso, não conseguia fugir.
Por sorte não fiquei esmagado debaixo da
viatura. Rapidamente o pouco pessoal ileso, retirou-me colocando-me em segurança. Quis levantar-me mas não conseguia. O corpo não subia
Há uns tempos que andava com uma irritante
impinge que não passava. Percorreu-me a cara toda, e naquela altura situava-se
no nariz. (Ainda hoje nas confraternizações, o pessoal da minha secção se ri do
pedido que fiz naquele momento aflitivo). Não conseguindo mexer os braços, pedia
que me coçassem o nariz.
Já na enfermaria do quartel, chamaram a avioneta que trouxera o correio e que estava de
regresso. O piloto que Eu já conhecia, gracejou: olha
quem é Ele, finalmente o Furriel como passageiro. Teria achado graça, se não
estivesse triste e com dores. No preciso momento do acidente, tinha acabado de
ler no aerograma que recebi dos meus Pais, “Desejamos-te um Feliz Natal”. ..Sim
senhor, Belo Natal.
Ali estava Eu no chão da avioneta “ensanduichado” e nú, numa maca a caminho do Hospital Militar do Luso. Ao meu
lado de pé, o Furriel Jorge (enfermeiro) com uma mão agarrada ao tecto e a
outra segurando o frasco do soro.
Soube depois que tinha partido com fractura
em diagonal, o braço “úmero” esquerdo, e uma forte dor no ombro e clavícula do direito.
Fui operado ao braço partido, ganhando o estatuto de pessoa ajuizada porque "como se vê" passei
a ter dois parafusos a mais que ainda hoje permanecem.
Os parafusos não deviam sobressair do osso. Eu que o diga "pelas dores que passei",
mas era o que havia.
mas era o que havia.
Fiquei internado na Enfermaria dos Sargentos, e
tinha como companheiros: um africano catanguês, crivado de balas que dizia não
saber como tinha escapado, e um Furriel com os dedos esfacelados.
Com uma bola
enorme de gaze em cada mão, ESTE chorava porque além das dores, não conseguir escrever em
condições. Numa instrução "armado em Técnico de Minas" ao desmontar uma granada, rebentou-lhe o detonador quando o
tinha entre mãos.
No chão havia algumas folhas de papel amachucado, porque “sem
dizer aos pais”, queria escrever a carta semanal. Espetava a esferográfica na
gaze com os dentes tentando escrever, mas sem o conseguir, mudava de folha.
Eu, com os dois braços temporariamente inutilizados
(um, com gesso desde a mão até à omoplata e o outro, colado ao peito com uma
gaze enorme), sentia-me impotente. No terceiro dia de manhã, chamei por
diversas vezes o enfermeiro de serviço (que gostava do desenfianço) mas em vão.
Como
estava “à rasquinha” resolvi levantar-me sozinho.
Deitado de barriga para cima, deslizei as pernas para fora da cama, e tentei pôr-me de pé fazendo balanço. Falhei as primeiras duas
tentativas, e como não há duas sem três: o impulso foi tanto, que acabei
esmurrando a cara ao cair “desamparado”, de bruços no chão.
Nessa tarde na consulta, contei ao médico o
sucedido e pedi autorização para me deixar sair do hospital, para ir morar numa
vivenda alugada pelos colegas da Companhia
2506, onde até tinha se necessário, um Enfermeiro.
Acedeu mediante condições*
Também Eu nunca escrevi aos meus Pais a contar o sucedido,
e preocupava-me porque nas visitas o pessoal dizia-me: é pá Só os braços?, tiveste sorte!!, disseram-me que tinhas partido as pernas e tudo.
Se a tão poucos quilómetros a notícia já ia assim, como chegará a Portugal?
A tristeza era maior que o sofrimento. Sem
querer tornei-me um “dependente”. Ninguém imagina o que é ter de pedir ajuda aos colegas “durante
tanto tempo”, para me darem a comida à boca, fazerem-me a barba e não só, até as necessidades
mais básicas. Brincavam comigo: é Pimenta, estás a ficar amarelo, queres cagar?
Por vezes era verdade. Estou-lhes grato até hoje, pela atenção, dedicação,
amizade.
Demonstraram na altura, que camaradagem não é aquilo que existe nas
bicicletas.
Era a altura do calor. Assim sobrevivi três meses
“sem os dois braços”, e mais um mês só com o gesso, num. Mesmo com dores, o braço direito foi “dado
como pronto”.
Metia aftershave todos os dias pelo gesso
abaixo para suavizar o odor, e pedia ao Criador que não deixa-se entrar nenhuma
pulga para o interior do gesso, pelos vistos um martírio e coisa muito
frequente. Num estabelecimento próximo da vivenda, uma simpática senhora por vezes quando
me via passar, dizia para me animar: o nosso Furriel hoje parece mais
feliz, tem melhor cara. Um dia até me ofereceu uma espécie de lenço, para
substituir o que trazia ao peito a segurar o braço.
Continua...